Fantasmas (Parte 2)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Quarta-feira.
Quando acordei tive a impressão de que esse dia seria mais insuportável que o anterior.
Não estava errada.

Na faculdade fiquei sabendo que teria que voltar a Urca à tarde para uma reunião de última hora. Ótimo... estava crente que teria aquela semana para me acostumar a ser indiferente com o Lino...

Depois fiquei sabendo que as "Irmãs Tenebrosas" estavam fazendo estágio no campus do Fundão - elas tinham este apelido por serem conhecidas como as encrenqueiras (e fofoqueiras) da minha turma. Uma estava perto de Lili, no CCMN, e a outra perto de mim, na Química. Ótimo... Teria que tomar cuidado com a amizade delas...

Até as aulas, geralmente agradáveis, foram insuportáveis. Tínhamos um professor que nunca estava totalmente sóbrio quando dava aula... Ele vivia mascando balinhas de gengibre para disfarçar o bafo alcólico e naquele dia, eloquente que ele era, um fragmento da balinha voou e colou no meu braço, eca!... Ótimo! Todo mundo riu de mim.

Depois de viajar em pé, me despedir da Lili e comer num trailer barato, segui para o IF.

Quando cheguei no saguão senti um clima diferente no ar.
O Zé não estava presente e Lino, que tinha me dado um "boa tarde" sério e frio, rabiscava num bloquinho sobre a bancada.
Estranhei.

-- Cadê o Zé? - perguntei após ter guardado minha mochila e assinado meu ponto.
-- Ele não vem hoje. Tem seminário. - respondeu Lino ainda rabiscando cabisbaixo.

Menos mal. Zé estava bem.
Estávamos a sós no balcão, e normalmente aquilo me incomodaria. Mas Lino não parecia mesmo estar bem e aquilo me incomodava ainda mais.
Sentei em minha cadeira de sempre e inclinei buscando o rosto dele:

-- Que cara é essa, Lino? - perguntei tentando não parecer intrometida - Você está bem?

Ele continuou rabiscando.

-- Estou bem, Alya. - mentiu ele.
-- Não parece... - insisti mesmo com medo de levar um fora - Não quer falar...? - não consegui evitar pousar minha mão em seu braço. A recolhi.

Ele pensou. Finalmente olhou pra mim, suspirou e largou a caneta. Parecia constrangido, mas resolveu falar:

-- Minha namorada e eu tivemos uma briga... e ela foi embora... - falou hesitante.

Sabe quando você corta o dedo com papel? Algo tão fino que você fica imaginando como pode ser tão dolorido? Pois é... Foi como eu senti o que aquela frase fez com meu coração... um papercut.
Ele tinha namorada... e estava sofrendo por ela. E esse "foi embora"? Eles moravam juntos? Não tive coragem para perguntar...
Minha aura mudou de cor.

-- Ah... puxa.... Como você está? - perguntei controlando minha expressão.

Ele apertou os lábios e deu de ombros.

-- Não foi nossa primeira briga... Ela é muito possessiva. - balançou a cabeça - Nosso relacionamento já estava estremecido...

Apesar de estar enamorada dele, eu fiquei triste porque ele estava triste. Me lembrei das vezes em que tinha terminado com alguém e do clima ruim que era. Imagine se ele estivesse mesmo apaixonado pela moça? Não gostei de ver sua dor...
Eu queria confortá-lo... talvez abraçá-lo... Me contive:

-- Ela volta... - eu sorri complacente. Quem não voltaria pra ele? - Confie em você.

Ele riu sem graça.
Olhamos para a frente. Ficamos em silêncio. Eu não sabia o que dizer e ele ruminava seus pensamentos.

-- Sabia que uma vez eu e uma garota desmanchamos porque nós falávamos pouco? - ele disse sem mais nem menos. Eu olhei e ele sorriu tristemente - Ficávamos um olhando pro outro calados. Daí concluímos que era melhor acabar com o namoro. - e riu.

Eu ri com ele, mas era óbvio que ele estava mudando de assunto. Não queria me dar detalhes sobre o relacionamento dele ...
Eu respeitei sua privacidade e até gostei do tópico mais leve. Consolar ele por outra garota não era algo que eu conseguiria fazer sem parecer um pouco falsa...
Eu não podia negar que o fato de saber que ele estava só mexia comigo... As perguntas começavam a pipocar na minha cabeça: será que eles voltariam? Será que o coração dele estava muito machucado? Será que eu poderia ter alguma chance?

-- Você tem namorado, Alya?

Essa me pegou de surpresa.

-- Ãh? Eu?... Não...não. - respondi. Por que ele queria saber? Me compararia ao relacionamento sério dele? Me achava muito jovem? Inexperiente? - ... Eu fiquei com um garoto no Carnaval... - já arrependida - ...Mas foi só passatempo.
-- Ah... - e voltou a olhar para seus rabiscos.

Eu olhei pro nada... era melhor procurar o que fazer...

-- Você tem muitos "passatempos"? - ele perguntou isso sorrindo mas olhando para seu bloquinho.

Muitos. -- Ãh... Não. Não muitos. - estava meio sem jeito, mas aí veio uma pontinha de coragem - ... Eu ainda estou procurando um par... - ... de preferência japinha com furinho no queixo...
Ele me olhou: -- E Marconi?

Mais surpresa agora.

-- Que tem ele?
-- Vocês... - e balançou as sobrancelhas.

De onde ele tirou aquilo?

-- Não. - respondi - Nós somos apenas amigos.
-- Ah... - e fez uma expressão de "Não é o que dizem..."
-- Que foi? Acha que estou mentindo? - eu estava me zangando.
-- Não, não. - olhou pra frente - É que vocês são tão parecidos...
-- ???

Ele me encarou:

-- Vocês são tão ativos... eloquentes... líderes... Guerreiros, por assim dizer. - ele sorria com o canto da boca - Estão sempre juntos lá na faculdade...

Eu gostei do elogio. Mas isso não fazia de mim namorada automática do Marconi...

-- Ah... - desviei os olhos - É. Somos parecidos neste sentido. - sorri - Mas ele tem muitas namoradas... - rolei os olhos - E eu não quero ser mais uma na coleção dele...

Rimos juntos.

Esse era um dos motivos do porque Marconi não me interessava. As garotas viviam cercando ele... e ele pegava todas. Acho que tinha a ver com sua liderança no D.A. Ele era realmente muito carismático. Atraía todos a sua volta.
Eu até o admirava. Nosso relacionamento era muito bom. Mas não conseguia me imaginar namorando ele... Além disso ele não fazia meu tipo físico - loiro de olhos azuis. Naquele momento eu estava preferindo os niseis, sanseis...

Lino meneou a cabeça:

-- E eu sou um desastre com garotas... - sorria, mas parecia constrangido - Sempre acabo estragando tudo...

Olhou para longe. Algo passou pelos seus olhos, e seu sorriso sumiu.

-- Ei...! - chamei tocando seu braço novamente. Droga! Controle-se! Tirei a mão - Não fica assim, não... - sorri - Essas coisas passam... Você é um cara muito legal... - e involuntariamente procurei seus olhos - Se ela não voltar, vai estar cometendo um erro...

Ele me encarou num olhar indecifrável.
Eu fiquei sem jeito e tive que quebrar o clima estranho:

-- Além disso... - disse desdenhando - Quem mais poderia aturar esse seu jeito esquisito? Só ela mesmo... - e eu...

Nós rimos de novo.
Ele parecia mais animado. Ótimo... ter que consolar o cara que queria sobre outra garota que, na melhor das hipóteses, era minha rival...
Que dia!
Os usuários foram chegando e nos distraímos com o trabalho.
Éramos bons nisso. Trabalhávamos em equipe. Enquanto um dava baixa, o outro colocava no carrinho, enquanto um fazia a estatística o outro ordenava as fichas...
Houve um momento em que Lino resolveu arquivar as obras devolvidas. Eles, o Zé e ele, estavam evitando que eu fosse ao acervo, imaginei eu, por causa da minha... ãh... sensibilidade.

Um usuário devolveu um livro. Me levantei, o peguei e o pousei sobre a bancada perto das coisas do Lino. O usuário saiu me dizendo "até logo", mas eu mal ouvi. Meus olhos estavam sobre aquele bloquinho que o Lino estava rabiscando.
Tentei ler mas não entendi nada. Caligrafia feia e palavras desconhecidas.
Peguei o bloquinho e o aproximei do rosto. Não estava em português... apertei os olhos.

-- É um mantra. - disse Lino na minha nuca.

Abafei o grito com um arquejo. O bloquinho quase caiu.

-- Ai, Lino!!! Que susto! - exclamei virando-me para ele com a mão no peito. - Aparecer assim do nada, pô! - respirei. Ele estava tão próximo de mim! - Um mantra!? - perguntei para disfarçar.

Na época eu tinha uma vaga ideia do que seria um mantra.

-- É. É um fragmento de um mantra budista. - ele tinha um sorriso no canto da boca - Uma espécie de oração...

Eu me virei e sentei em minha cadeira.

-- Você é Budista? - perguntei.

Religião era um tópico que ainda não tínhamos conversado. O Budismo podia explicar muitas coisas nele... principalmente o silêncio. Mas naquela época eu não conhecia bem essa filosofia.

-- Eu costumo frequentar um templo... - disse sentando-se ao meu lado - Mas não sou exatamente um budista... - sorriu - Gosto de ir lá pois me sinto em paz por lá.
-- Ah... - fiquei imaginando que tipo de paz ele precisaria. Empurrei o bloquinho que ainda estava em minhas mãos pela bancada para ele.

Ele olhou para o bloco e olhou para mim.

-- Você segue alguma religião? - perguntou
-- Não. Quer dizer... Temos uma formação católica e tudo, mas não frequentamos nenhum templo ou igreja... - respondi incluindo minha casa - Minha família é muito eclética... - só Deus sabe o quanto...

-- Ah... - ergueu as sobrancelhas. Ele tornou a olhar o bloco. Depois arrancou a página e colocou a folha na bancada, na minha frente - Fique para você.

Fiquei surpresa.

-- Pra mim!? - sorri - Valeu... - peguei a folha - Vou colocar em minha agenda.

Tive que desviar os olhos. Eles deviam estar brilhando com aquela pequena demonstração de afeto dele.

Reli o fragmento, mas ele só veio a fazer sentido anos depois, com o advento da internet.

"Myoho renge kyo
Hoben-pon Dai ni
Niji seson
Ju sanmai
Anjo ni ki
"

-- Tenho que voltar a Unirio hoje... Você vai? - perguntei enquanto guardava a folhinha na agenda.
-- Vou sim. - levantou-se - Me espere. Vou resolver algumas coisas com Nini e depois saímos, ok?
-- Ok.

O humor dele estava visivelmente melhor. Não posso negar que o meu também estava. Acho que havíamos ajudado um ao outro naquela tarde.

Ele foi a sala de Nini Brantes e voltou com vária folhas.

-- Vou colocar estas cartas nos escaninhos. - disse passando pelo hall - Quando voltar, saímos.

Eu assenti.

Comecei a guardar minhas coisas. Eu tinha que prestar atenção pois eu sempre esquecia alguma coisa no estágio. Canetas, casaco, até meus cadernos eu já tinha esquecido...
Notei uma presença atrás de mim. Era Nini. Ela sorria enquanto pegava as folhas de estatística:

-- Já deu sua hora, não? - comentou ela. Eu já deveria ter partido.
-- Ah, sim. Mas estou esperando o Lino. Nós vamos para a Unirio... - respondi fechando o zíper da mochila.
-- Ele fica bem mais falador com você por aqui... - sorriu - Mais animado... - ela queria parecer natural, folheando a estatística, mas tinha uma expressão bem estranha no rosto.

Eu fiquei sem graça. Ela estava insinuando alguma coisa? Resolvi fazer piada.

-- Também pudera... Comigo falando pelos cotovelos e enchendo os ouvidos dele, ele tem que, no mínimo, me acompanhar. - e ri.

Ela riu também.
Lino voltou e após as despedidas, saímos.

Logo estávamos andando pelo campus. Conversávamos como dois bons amigos. É claro que eu falava mais, mas isso já não me era estranho pois ele me ouvia sorrindo.
Como na primeira vez, ele foi atencioso, me ajudando a subir e a descer da condução.
Nos alojamentos, tornamos a sentar naqueles banquinhos do jardim enquanto aguardávamos o Urca chegar.

A sensação de déjà vu continuava lá, mas este era o menor dos meus problemas... Ficar perto de Lino, a sós, ainda mais quando ele se sentava assim tão ao meu lado, começava a parecer um desafio muito grande.

Retornamos ao assunto sobre Religião.
Ele falou dos mantras, dos discos budistas, das outras pessoas que frequentavam o local...
Não havia como falar de minhas crenças sem falar de minha linhagem confusa. Eu tinha antepassados maternos ciganos espanhóis com católicos portugueses, bisavô negro e seus cultos afros e bisavó índia com pajés, fora os italianos católicos romanos por parte de pai... Enfim, era assunto que não acabava mais.

O ônibus chegou e fomos para o fim da fila. Lotou rapidinho. Dessa vez ele teve que viajar em pé. Droga!
Mesmo assim, de tempos em tempos, ele se inclinava para fazer ou ouvir algum comentário meu.
Nenhum dos dois falou sobre namoros ou namorados. Acho que não queríamos falar sobre o assunto que chatearia aos dois...

Com aquela conversa fluída, chegamos à Unirio rapidinho.

Antes de subir para o DA, finalmente tive coragem para me despedir do Lino à moda carioca. Beijei-lhe o rosto rapidamente e murmurei um "tchau". Não tive coragem de olhar de novo - subi as escadas apressadamente. Eu já tinha passado dos meus limites...

Na sala, cumprimentei os amigos e abracei Marconi fraternalmente. Não nos víamos desde antes do Carnaval. Foi bom ver aquela alegria toda. Leandro também estava lá. Estava lindo, mas eu o tratei com a maior frieza que a educação permitia.

A reunião foi rápida. Em uma hora já estava saindo do campus. Não precisava de companhia. Estava segura sobre o trajeto tranquilo e o sol tinha acabado de se pôr.
Assim, imagine minha surpresa quando Leandro emparelhou comigo quando eu passava pelos portões da faculdade.

-- Oi.
-- Oi. - respondi sem diminuir o passo.

Notei que ele estava sem mochila ou cadernos, o que concluí que ele estava ali só para falar comigo.

-- Er... Você me desculpa pelo nosso último encontro? - perguntou com um sorrizinho cínico.

"Encontro"... Humf!

-- Tá desculpado. Mas não gosto que venham me agarrando.... - fui grossa. Continuei andando.

Ele riu para si mesmo. Era um tipo muito seguro de seus encantos.

-- Você é muito gata... Eu não resisti.

Mentiroso, ainda por cima!

-- Tá... Foi engraçado... Mas não faz mais isso, ok? - e continuei andando. Não olhava para o lado.

Ele tocou meu ombro e paramos. Tive que olhar. Ele fez uma cara querendo parecer sério.

-- Podemos ser amigos, hein?... Me desculpe. - e sorriu descarregando o poder de seus lindos olhos verdes...

Eu suspirei.

-- Tudo bem. - quem iria ser inimiga de um gatão daqueles? - Amigos. - sorri um pouquinho.

Ele sorriu satisfeito.

-- Tenho que voltar para a aula...
-- Tá. - já vai tarde...

Ele se aproximou, segurou-me pela nuca, beijou minhas faces e se foi.

Petulante...

Peguei meu ônibus.
Enquanto ele avançava pelo Aterro eu revisava meu dia.
Que dia!

Abri a agenda e reli o mantra que Lino me dera.
Se não fosse o fantasma da ex-namorada dele me assombrando, aquele presentinho teria muito mais significado...

(Próximo capítulo)

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